Pandemia acentua desigualdade no acesso à internet e revela mobilização social para combatê-la

julho 14, 2020

Desde o início da pandemia, a sociedade civil tem sido responsável por grande parte das ações de mitigação dos efeitos sociais e econômicos da doença causada pelo novo Coronavírus. Seja quando a juventude se mobiliza ou quando comunidades se organizam, são as pessoas em seus territórios que estão fazendo a diferença ante a letargia do governo federal no enfrentamento ao Covid-19.

Ainda que diversas, as iniciativas têm algo em comum: elas precisam de acesso à internet. Dele depende o cadastro em um programa de benefícios, a organização de uma vaquinha online ou o compartilhamento de notícias e informações. A internet se desvela na pandemia como um item vital como água, energia e outros direitos.

Mas, assim como outros serviços públicos, o acesso à internet no país é marcado pelas desigualdades, como atesta Sergio Amadeu, pesquisador de redes digitais e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC): “O que nós temos no Brasil é uma conexão que não chega nas áreas de maior pobreza. Os segmentos mais pauperizados, as periferias, as cidades-dormitórios, não têm acesso igualitário à internet.”

Segundo o último TIC Domicílios – pesquisa realizada pelo CETIC para avaliar o acesso às TIC (Tecnologia, Inovações e Comunicações) – 1/3 das casas no Brasil não têm acesso à internet. Nas classes D e E, este percentual alcança 59% dos domicílios, sendo o preço o maior entrave para a maioria dos pesquisados.

Brasil, uma colônia digital

Outro dado da mesma pesquisa chama a atenção: 70% dos brasileiros têm algum tipo de acesso. Isso não significa que seja um acesso qualificado, como explica Ester Borges, pesquisadora do InternetLab – Centro de pesquisa em direito e tecnologia.

“Nas classes D e E, se percebe que 85% das pessoas usam internet só pelo celular. Isso limita o uso: como estudar, como trabalhar, como acessar sites de informação com os recursos limitados de um celular?”

Se uma criança tem que esperar a mãe voltar do trabalho para conseguir acessar as aulas online durante a pandemia, ou se uma família tem que escolher entre comprar comida ou pacote de celular – como relatado em reportagem da Folha de S.Paulo – isso significa que esse acesso continua a ser excludente.

“Nos últimos tempos, vários extratos sociais conseguiram acessar a internet por conta da facilitação de aquisição de celular. Mas a maior parte dos brasileiros usam planos pré-pagos, mais caros, e que são limitadíssimos. Quando vem a pandemia, o governo, a Anatel, não garantiram que essas pessoas tivessem acesso universal à rede. Ao contrário de outros países, que proibiram o bloqueio quando usuários não conseguiram mais pagar seus planos, isso aqui não aconteceu, o que seria um mínimo para as pessoas se informarem, estudarem e ficarem em casa”, defende Amadeu.

O acesso desigual modifica também como as informações chegam às pessoas, o que possibilita a disseminação de informações incompletas ou falsas, especialmente danosas em um contexto de crise sanitária e política.

“Uma pessoa que tem telefone pré-pago tem acesso a um limite de dados. Quando este limite acaba, ela consegue acessar só facebook, instagram ou outras redes sociais. Por exemplo, ela vê uma manchete nas redes sociais e não consegue clicar nela, o que já muda o acesso ao conteúdo”, complementa Ester.

Para Amadeu, a desigualdade de acesso à internet é perversa em duas facetas: se, por um lado, ela é impeditiva no que diz respeito à garantia de direitos – como a dificuldade de muitas pessoas em se cadastrar no auxílio emergencial durante a pandemia -, por outro,ela expõe um Brasil que depende fundamentalmente de empresas e serviços internacionais, o que significa que os dados dos usuários brasileiros são extirpados sem controle.

“O ciberespaço que, no passado, se acreditava ser um espaço acima da realidade, reproduz e amplifica as desigualdades. O Brasil revela na pandemia seu status de colônia digital, sem serviços próprios, infraestrutura própria. Os dados, o ativo mais importante na internet, não são mantidos no nosso país. Somos um país de extração de dados dos segmentos mais pobres.”

Marco Civil da Internet: conquista dasociedade civil organizada

A luta pela democratização de acesso à internet acontece fundamentalmente no campo da sociedade civil organizada. Um dos marcos regulatórios de maior importância, o Marco Civil da Internet, foi consolidado em 2014 como uma vitória de pressão popular.

“A própria banda larga foi uma conquista da sociedade civil organizada. Ela era muito ruim, e por pressão civil, o governo Lula criou o Plano Nacional de

Banda Larga, obrigando as operadoras a melhorar seu serviço. Hoje há uma pressão dos movimentos que querem wi-fi livre, uma pressão das cidades que querem melhorar sua conexão. Está mais do que comprovado que a internet não é brincadeira, é indispensável para tudo que fazemos, um direito fundamental”, defende Sérgio.

Uma das lutas sociais as quais Sergio está ligado é a de tornar a internet um serviço público essencial, assim como água e luz. No começo de março, começou a ser discutida uma proposta de emenda constitucional, a PEC 8/2020, visando incluir o acesso à internet entre os direitos fundamentais da Carta Magna. Há também o PL 7182, de 2017, que busca desbloquear o acesso à internet caso os usuários excedam o uso de dados, mas ele está parado.

“A luta para transformar o acesso à internet em um serviço político essencial é dizer que ela tem metas, que não pode ser interrompida, tem que ter qualidade. Significa que eu não posso ter boa conexão no centro de São Paulo, mas na periferia a internet ficar falhando. É ter acesso à internet de maneira igualitária.”

O acesso à internet como força catalisadora – e até de sobrevivência – de territórios durante a pandemia foi mapeada por Sergio Amadeu e outros pesquisadores da UFABC no Mapa Colaborativo. O projeto mostra as mobilizações da sociedade civil frente à pandemia, e é nelas que o pesquisador vê qualquer esperança de transformação.

“Eu fico até emocionado com essa questão do movimento social. Tem entidades lá no fim da Amazônia usando internet para se comunicar, obter apoio, doações nos territórios. Tem a UNEAFRO formando digitalmente agentes populares de saúde, algo que o governo deveria estar fazendo. Enquanto Nova Zelândia e Cuba, para citar alguns exemplos, preferem apostar em ações concretas, o Brasil coleta dados dos seus usuários. Mas a sociedade civil continua se organizando”, conclui Amadeu.

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